quarta-feira, 23 de maio de 2012

A perca







Da série “só acontece comigo”: estava parada nu sinal da avenida Ipiranga quando um carro encostou ao lado do meu.  A motorista abriu a janela e pediu para eu abrir a minha.  Era uma moça simpática que me perguntou:  “Martha, o certo é dizer perda ou perca?”
“Hãn?”
“É perda de tempo ou perca de tempo?  Como se diz?”
a pergunta era tão inusitada para a hora e o local, tão surpreendente, vinda de alguém que eu não conhecia, que me deu um braço: por um milésimo de segundo eu não soube o que responder.  Perca de tempo, isso existe? Então o sinal abriu, os carros da frente começaram a engatar a primeira, eu olhei para ela e disse: “É perda de tempo.”
Dei uma risada e segui meu rumo também.
Se alguém te diz “não perca tempo”, e todos te dizem isso o tempo todo, como não confundir o verbo com o substantivo?  Tantos confundem.  São coagidos a tal.
E cá entre nós, a “perca” parece mais amena do que a perda.
A perca de um amor é quase tão corriqueira como a perca do capítulo da novela.  A perca é feira livre.  A perca é festiva.  A perca é música popular.
Já a perda é sintonia de Beethoven.
A perca acontece no verão.  A perca de uma cadeirinha de praia, a perca de um palito premiado de picolé.
As perdas acontecem no inverno.
A perca é simplória, a perca é distraída, a perca é provisória, logo, logo reencontrarão o que está faltando.
A perda é pra sempre.
As percas reinventam o vocabulário e seu sentido, não são graves, as percas são imperfeições perdoáveis, as percas são inocentes.
As perdas são catastróficas, nada têm de folclóricas.
A perca é um erro gramatical, e apenas esse erro ela contém.  De resto, não faz mal a ninguém.
A perda é um acerto gramatical, mas só esse acerto ela contém.  De resto, é brutal.
Se eu pudesse voltar no tempo, reconstituiria a cena de outra forma:
“Martha, é perda de tempo ou perca de tempo?  Como é que se diz?”
“ O correto é dizer perda, mas é muito solene.  Perca dói menos por ser mais trivial.


Martha Medeiros


a PERCA




a PERDA

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